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Avó Maria

Naquele cantinho de "coisas que nunca vou esquecer", estão as palavras da minha bisavó Maria, sempre que a família vinha de férias para Portugal, “esta pode ser a última vez que vos vejo…”. Houve uma vez em que isso se cumpriu. Maria de Sousa Fernandes, era o seu nome. Este nome, expoentemente repetido, foi por mim escrito infinitas vezes, na tentativa de que ela também o conseguisse. Com os meus 6 anos, ansiava aprender a ler e escrever, primeiro, para poder devorar todos os livros de histórias que conseguisse, e segundo, para ensinar a avó Maria a escrever, pelo menos, o seu nome. Se eu aprendia, ela também ia aprender, dizia eu. Estávamos em patamares iguais, só que desfasadas no tempo. A avó Maria tinha sempre imensas histórias para me contar. Hoje vejo o quanto nos enriquecemos uma à outra. Ela com a sabedoria dos seus 80 e poucos anos, eu com o frescor e ingenuidade de quem tem toda uma vida pela frente. Era capaz de passar horas a pentear o seu cabelo branco, e a pintar-lhe os lábios. Mostrei-lhe, orgulhosamente, o meu primeiro telemóvel, lia-lhe as minhas histórias preferidas, dava-lhe aulas de português e matemática, segurava-lhe a mão para a ajudar a escrever o seu nome e adorava apertar-lhe as bochechas. Lembro-me de cada bocadinho dela. Memorizei-a, com todos os meus sentidos. Consigo sentir a textura dos seus braços magros. A pele das suas mãos, lisa e fina. O seu cheiro. Era capaz de passar horas a brincar com os traços da sua velhice. De lhe puxar a pele das mãos e dos braços e pasmar com o facto de não retornarem ao lugar. O relevo das suas veias, que eram verdes e salientes. Fascinava-me cada traço dela, pois continha marcas de uma vida que eu não tinha assistido, mas que admirava fervorosamente. Tal como quando via fotos suas antigas, com a sua mula a ir buscar água ao oço. Costumava olhar para as fotos e pensar que a minha avó era importante (...)

Ela odiava quando a empurrava com força na cadeira de rodas, ou quando baloiçava o seu cadeirão. Muitas vezes não obedecia quando me dizia, quase desesperadamente, para parar. Sei que fui cruel. Não entendia que tinha de a estimar e perdia a paciência. Gozava quando dizia mal o meu nome, apelidava-a com nomes que hoje sei que magoavam, não entendia quando a via chorar... Desculpa, avó. 

No dia em que desapareceste fisicamente, não pensei na falta que me virias a fazer. Pensei que não terias mais nada para me ensinar. Mas estava enganada. Ensinaste-me ainda mais nestes anos sem ti. O teu quarto ainda tem o teu cheiro. Gosto de me lembrar de ti lá, mesmo que a memória seja ver-te numa cama articulada do hospital. Ainda guardo o termo azul que te levava com sopa numa das primeiras vezes em que foste internada. Lembro-me demasiado bem da última vez que te vi, já sem força. Já pouco falavas. O teu coração estava fraco, mas os teus olhos diziam tudo o que não conseguias expressar. Nunca desapareceste, e hoje sei-o bem. Foste sempre aparecendo e colorindo os meus sonhos. Aparecias, a sorrir, sentada, com o teu rádio a tocar as músicas do antigamente. Sempre que me sinto perdida, tu estás lá...Como naquele dia em que me perdi na feira, e não quis ir com a minha mãe quando ela me encontrou na carrinha dos jogos de cama. Só a ti cedi, quando chegaste e me abriste os braços. E sei que eternamente irei estar assim... dentro dos teus braços.

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