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"They say she couldn't, so she did"

Há muito tempo atrás - e aqui o tempo é subjetivo, mas entenda-se o tempo da minha existência - tinha os meus 9 ou 10 anos e andava num campo de férias. Eram umas quaisquer férias escolares e eu tinha decidido que queria passá-las em atividades com outras crianças. Lembro-me que na altura foi um desafio. Um começo. E eu sempre gostei de começos, aliás. Atirar-me de cabeça para um novo desafio, sozinha, sem conhecer nada nem ninguém. Simplesmente abraçar um desafio novo, e começar do zero. E sim, aqui estou "apenas a falar de um campo de férias", mas para uma criança introvertida como eu era, foi um imenso desafio.

Foi mais ou menos por volta dessa altura que senti - não pela primeira vez, mas de uma forma mais crua - a brutal chicotada que é o bullying. Esse parasita, silencioso, invisível, que se hospeda num rosto angelical e inocente. Comecei a senti-lo sem o saber. Não tinha consciência da ferida aberta. Era como cortar o dedo em papel, e só reparar algum tempo depois. O bullying não se esconde, não sente qualquer tipo de remorso, não tem consciência. Apodera-se das mentes e faz delas o que quer. É como uma sombra que engole, que delimita o seu espaço, fazendo com que a sua presa não ouse pôr um pé fora da área à qual esse escrupuloso verme a confinou.

"Porque é que és amiga dela?" Ouvia estas palavras - mesmo que não fosse suposto - e conseguia sentir a garganta a fechar, formando-se uma bola até ao ponto de ebulição. Não a conseguia travar. E não me lembro da resposta. Fiquei paralisada com a força das palavras "Porquê?". Como se eu não fosse digna de ter amigos, só porque, sucintamente, eu era gorda. Consigo sentir e reviver o momento vezes sem conta...como uma memória que ficou presa no limbo e que se repete numa realidade paralela, vezes e vezes sem fim. Consigo sentir a tristeza, consigo sentir a dor, que se expressa para fora do meu corpo em doses desmedidas. A minha única questão, aquela que repetida foi, silenciosamente, durante anos, "Por que é que ela não gosta de mim?". Eu apenas queria uma amiga, mas ela não me queria como sua amiga, porque eu era gorda.

"Nunca vais conseguir fazer o pino porque és gorda". Dizia-me isto, no meio das minhas inúmeras tentativas falhadas. Silêncio. O cheiro daquela cave ficou impregnado em mim, tal como os buracos causados pelas palavras que, tal como flechas, chacinavam o corpo. "Nunca vais conseguir" "Porque és gorda". As minhas cordas vocais uniram-se num laço, que simultaneamente queimava calcionando. Só queria chegar a casa e não voltar mais àquele sítio, esconder-me do mundo. 

Depois? Treinei tardes sem fim até conseguir fazer o pino. E quando finalmente o consegui, a certeza de que tinha dado um pontapé naquele verme que se acorrentava a mim e que tanto repetia "Nunca vais conseguir..."

Claro que consegui.
Foto: (Muito) enferrujada já.

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